Chuva

Lady_Godiva_(John_Collier,_c._1897)

“We share apocalyptic views”

– Silversun Pickups, Well Thought Out Twinkles.

1.

“A cidade envelheceu”

Era irônico Júlia dizer isso estando na estação de trem mais antiga de São Paulo comendo um bolo Ana Maria em pé vestindo uma capa de chuva amarela que destoava do clima seco e quente. Parecia não se importar, no entanto. Abrigava no rosto mais anos do que os passados por aqui, mas Júlia sempre teve um ar meditativo como se tudo que fizesse fosse calculado e nada sem propósito.

“Você deve estar com fome.”

Carregava consigo uma mala de viagens pequena. Era a peça que mais destoava de sua figura, pensei, mas talvez eu já estivesse condicionada a pensar que Júlia me causaria estranhamento. Sempre fora assim, desde que nos conhecemos no colégio há quinze anos.

“Quer um pedaço de Ana Maria? Fazia tempo que eu não comia uma dessas, nossa… Cê envelheceu também Letícia, mas sei lá, ficou bem pra você…”

A mala devia ser maior para alguém que vinha de outro país não deveria?

“Hmm tá bom isso aqui. Lá fora não tem essas porcarias, sabe? Quer dizer, tem outras, mas não com o nível tóxico delicioso daqui. Vai ver é a poluição…”

Ela enfiou o resto do bolinho na boca de uma vez só como se não quisesse perder nenhum centímetro do prazer do doce que para mim era tóxico por ter açúcar demais. Me peguei saboreando Júlia saboreando um bolinho tóxico. Era confuso.

“Júlia você só trouxe essa mala? ” Mas na verdade queria dizer: “Por que eu não te encontrei num aeroporto em vez de uma estação de trem se você veio da França e, vindo de lá, de onde você morava, de onde você viveu nos últimos doze anos, por que você trouxe apenas uma mala que deve ter um nada de roupas e objetos pessoais e por que diabos você está comendo uma porra de um bolinho tóxico de tanto açúcar parada no meio de uma multidão iluminada pelas janelas velhas de um prédio mais antigo que nós dois juntas, numa cidade que já era anciã antes de você voltar e dizer que eu envelheci bem sem que eu saiba se você está caçoando de mim ou falando sério como naquele dia há tantos anos numa época mais remota que o chão que você pisa agora, indiferente.”

Por que diabos você voltou para a minha vida?

2.

Imaculada, Júlia semi dançava pelas vias tortas do parque da Luz. Ela me dissera para relaxar, que estava tudo perfeito. Tinha chegado em Guarulhos e vindo de ônibus até a República e depois pegara o metrô até a Luz. Queria andar por São Paulo de novo. Tinha saudades. O que era confuso, pois eu também tinha saudades.

“Tá tudo tão bonito e terrível ao mesmo tempo. São Paulo tá vertiginoso, Lê.”

Recebi seu telefonema há duas horas. “Oi Lelê”. Silêncio. Não queria ter reconhecido a voz. Mais silêncio. “Sou eu, a Júlia.”

Eu sei.

Ela disse que havia chegado da França, que havia voltado, talvez, para sempre. Talvez. Eu fiquei em silêncio a conversa toda. Ela me disse que cansara da Europa. Que estava velha demais para o primeiro mundo. Eu não argumentei que aqui não era mais o terceiro mundo, mesmo que fosse tão violento quanto. Ela disse que estava na Luz, perto da minha casa, que era sorte eu ainda morar no mesmo apartamento e ter o mesmo número de telefone. Também não argumentei que a vida não era a mesma, apesar de chamar do mesmo jeito.

“Cadê seus pais?”

Ela não tinha perguntado dos meus pais ao telefone. Disse ali com os olhos sinceros que seria meio indelicado como se aparecer do nada na vida da sua ex-namorada depois de doze anos fosse a delicadeza personificada de capa de chuva numa cidade seca.

“Não chove há quase dez meses aqui, cê pode tirar essa capa”

“Eu achei que você ia gostar. Tava uma puta chuva quando eu comprei ela num mercado ali na Place de Breteuil. Tinham umas azeitonas gostosas lá, do tipo que você adora. Eu tava comendo umas quando começou a cair o maior toró, cê nem sabe, daqueles que deixam o dia num breu. Daí tinha uma barraquinha com esse capote amarelo e eu lembrei de você na hora. Sei lá, cê sabe como eu sou sensitiva e o amarelo sempre me fez lembrar de você. E tinham as azeitonas também! Daí eu comprei e era como se você estivesse lá de novo. E daí eu senti vontade de voltar pra cá.”

“Pois é, mas aqui não chove mais. Terra da garoa no more. Já era. Acabou. Zé fini.”

“C’est fini!”

Júlia fez uma cara de quem ia soltar um muxoxo e pareceu tão velha quanto eu devo parecer para ela. Não consegui decidir se a idade lhe caia bem da mesma forma que nuca consegui decidir nada sobre Júlia. Quer dizer, Júlia sempre fora uma mulher bonita com seus olhos verdes e pele morena. Seu corpo debaixo da capa ainda possuía aquela assimetria perfeita da mulher baixa e paradoxalmente esguia. Nada mudara e tudo não era mais o mesmo. Havia rugas e cansaço nos olhos que brilhavam mais que tudo, mas elas apenas a deixavam mais a mesma Júlia de sempre. Senti uma vontade de despi-la para ver se conseguia decifrar o que ela significava. Se não para o mundo, para mim.

Como se adivinhasse o que eu pensava, ela disse:

“Somos duas balzacas, Letícia.”

Sorria quando usou meu nome inteiro como quando me dava broncas nua na minha cama há mais de quinze anos atrás.

3.

Quando transávamos, quando eramos jovens, eu e Júlia não fazíamos muito barulho. Os corpos eram mais ágeis e sensíveis, os movimentos mais elegantes. No meu quarto, quinze anos depois, senti a chuva no ar quando a língua de Júlia tocou o meu grelo inevitavelmente. Eu gemi mais alto e me odiei por isso.

A capa de chuva amarela que eu sim havia adorado jazia inútil no chão bagunçado do apartamento que  um dia fora dos meus pais. Eles estavam mortos sim foi o que não respondi a Júlia quando ela me perguntou. Morreram quase juntos, minha mãe de câncer de mama há dois anos e meu pai num acidente de carro seis meses depois. Ele morreu junto com ela, eu a cho. O Acidente foi apenas a oficialização de um suicídio não oficial.

Eu ainda sentia falta deles é claro, como sentia de tudo que eu havia perdido na minha vida adulta. Inclusive o corpo de Júlia que quinze anos atrás me fez ter vontade de viver nesse mesmo quarto escuro só para três anos depois me fazer querer morrer.

A semiluz do semi-dia da minha semi-vida iluminava o corpo inteiro de Júlia que me chupava. Sua bunda continuava maravilhosa arrebitada numa linha que descia até os cabelos longos e negros criando a ilusão que ela ainda era aquela garota adolescente que um dia me amou.

Contei os passos que nos levaram pra minha cama de novo, quinze anos depois.

1) A cara de muxoxo dela;

2) O decote debaixo da capa de chuva amarela;

3) O abraço que ela me dera do nada depois da cara de muxoxo;

4) Os seios dela contra a boca do meu estômago (sou 10 cm mais alta que Júlia)

5) O frio na barriga;

6) A umidade no ventre;

7) O beijo seco, raspado dos lábios rachados pelo tempo

8) A puxada de cabelo que dei nela que arrancou um suspiro de Júlia;

9) Ela dizendo pra gente ir logo para minha casa que ela estava com muito tesão.

Nove passos. Os passos de um programa para qualquer vício (e eu tinha muitos) eram no mínimo doze. Eu nunca passava do 4o. “Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos”. Mas passei pelos nove. Não eram muitos nem demorei muito a conta-los num esforço em vão de tentar segurar o choro que vinha inevitavelmente como a chuva em São Paulo.

4.

Eu não gostava mais do meu corpo. Quando jovem adorava a natureza bélica dos meus seios que ressoavam a minha altura. Eu era uma jovem bélica. Sentia a violência do mundo no ar. Naquela época ainda chovia em São Paulo.

Era natural para uma jovem lésbica que não tinha medo de dizer isso. Meus pais aceitaram como se não aceitassem. Entendiam sem entender. Me amavam, mas eu era alienígena para eles.

Por isso gostava do meu corpo grande, blasfemador. Eu ainda era dona de mim mesma.

Naquela tarde enquanto a chuva relaxava meu corpo que formigava e cheirava a Júlia eu me achava fraca demais. Sentia meu corpo relaxar da belicosidade que não resistira nem a um abraço de Júlia.

Deixei-a dormindo e fui para a sala estalando as partes do meu corpo que ainda estavam adormecidas. Sentei nua no sofá e fiquei olhando a sombra da chuva na parede. A chuva em São Paulo às vezes tinha esse efeito miraculoso de calar a cidade e o silêncio melancólico e ensimesmado me aprazia como uma segunda foda.

Eu estava velha e cansada como essa cidade e, como ela, ainda implorava por pequenas demonstrações de alívio, como a chuva, como a língua de Júlia.

“Eu vim assim que soube.”

Senti meu corpo perder as forças. Eu não queria chorar na frente dela. Não depois de doze anos de mágoa. Não agora, nua e melada de suor, com 30 anos de idade e sozinha no mundo.

“Lembra quando a gente falava que eramos as filhas do apocalipse? Uma das crianças nascidas em 1984 como se fossemos personagens de um livro de ficção científica?”

A sombra da chuva não era exatamente uma teia de aranha, mas se intrincava como se refletisse a entropia estranha que nos levara àquele dia de novembro atípico. Talvez fossem as sombras das lágrimas inevitáveis. Não eram o reflexo da silhueta perfeita de Júlia. Essa era um buraco negro, e buracos negros não deveriam refletir, deveriam?

“Eu lia Neil Gaiman e te chamava de Morte e queria ser a delírio, lembra? Pintava os cabelos de rosa, azul e amarelo. Haha. Que ridículo… A gente era jovem…”

“Por que você trouxe uma mala pequena Júlia?”

“A gente dizia que não precisava de família. Tinha algo a ver com o que a gente escolhia, com quem a gente escolhia pra ficar no fim do mundo, lembra?”

“Você não vai ficar não é?”

“Eu li numa notícia velha, cê sabe como eu odeio internet, Lê. Eu tava de bobeira num café desses que tem computadores, acho que até parecia meio antigo, mas tudo lá naquela cidade é velho. Olha só, e eu falando que São Paulo envelheceu…”

“…”

“Eu pensei em você porque tava chovendo e eu só tinha Nadja pra ler na bolsa. E Nadja me faz lembrar de você. Olha só que engraçado, dizem que dá pra achar todo mundo hoje pesquisando no google e puxa, eu te achei rapidinho. Eu só queria ver se você tava bem…”

“Me responde.”

“Quando eu fiquei sabendo dos seus pais me deu uma dor no peito. Eu me senti… eu me senti velha, Lê. Pensei em todas as vezes que a gente se escondeu aqui no seu quarto pra trepar, eles achando que a gente estudava matemática. Eu… Eu não podia deixar você sozinha aqui… Eu… Eu não sei…”

5.

Foi numa tarde assim, sem nada para fazer. Eu fui a um protesto contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo. Eu era punk e anarquista. Meu pai, velho socialista, sentia mais frustração da minha rebeldia do que se fosse um conservador de direita. Minha mãe tinha medo de eu me machucar. O que acontecia, inevitavelmente, mas nunca nada pior do que algumas borrachadas de cassetete de PM. Eu era mulher e branca e o machismo e o preconceito velado deles muitas vezes me protegia de uma forma que me deixava mais puta da vida.

Nessa tarde eu tinha cortado um lábio com meu piercing rasgado na boca e acabei me atrasando para encontrar Júlia. Ela não gostava de me ver em protestos. Dizia que sentia medo, que queria cuidar de mim, que eu me arriscava demais. Eu queria dizer que ela era alienada, mas nunca dizia. Nunca fui capaz de dizer coisas belicosas para Júlia.

Naquela tarde ela não estava mais lá assim como não estava mais no meu apartamento quando o crepúsculo caiu e já não chovia mais.

Nunca entendi o porquê de Júlia nunca ter me dito que iria para a Europa para nunca mais voltar. Fiquei sabendo que morou em vários países por lá. Fiquei sabendo de tudo e mesmo assim fiquei por aqui. Como fiquei neste apartamento todos esses anos e agora, sozinha observando a chuva acabar mais uma vez, persisto violentamente numa vida que já não está mais lá.

São Paulo, 08/10/2014.

Imagem: John Collier – Lady Godiva.