Ziggy

Era trapaça, ele sabia. Ziggy sentiu os dedos latejando com os calos abrindo outra vez depois de tantos anos. As cordas meio enferrujadas com o tempo doíam ao rasgar a pele desacostumada, mas havia familiaridade no processo. Era como voltar para casa.

– Quanto você quer por ela?

Empunhou a guitarra como uma arma para seu interlocutor. Era uma Giannini dos anos 70, modelo Diamond. Ziggy segurava a abertura do f da semiacústica como se fosse um gatilho.

– Sei lá, bicho, achei essa no meio das coisas do meu irmão. Tirei de lá antes que a família descobrisse. Sabia que cê ia curtir. Paga o que cê acha que pode.

Ziggy, um metro e oitenta e dentes amarelados pela nicotina e o uso de maconha desde os anos 80 avaliou a proposta do noia a sua frente, sabendo exatamente o que ele queria. Tirou um pacotinho suspeito do bolso dos jeans surrados, certificando-se que ainda estava lá. Era tão magro que às vezes as coisas do bolso caiam ao caminhar.

– Isso aqui está bom?

Ele sabia que o rapaz aceitaria bem menos do que aquilo que tinha no pacote, mas Ziggy se sentia magnânimo naquele dia. Maior que o sol. Além do mais, a guitarra era azul quase prata, como aquela há tantos anos.

Era trapaça, ele sabia, mas Ziggy apoiou o instrumento nas costas e saiu do túnel debaixo da estação como se fosse um andarilho clássico de filme americano. O que evidentemente era, a seu modo.

Precisava de cordas.

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Ziggy sempre tinha o que todo mundo queria. Pó, pedra ou pico. As plosivas silenciosas lhe rogavam a fama de junkie mor das redondezas. Ele mesmo não era um noia muito frequente. Sua tara era a psicodelia da guitarra. O som retirado do instrumento certo na hora certa. Era paudurescente e contraproducente ao mesmo tempo, mas era o que lhe fazia andar um outro dia.

Era a trapaça diária.

A teia de aranha que envolvia lentamente nosso herói numa tarde ensolarada era sua húbris refinada de conhecedor do negócio.

Nascido e criado nos anos 70, ele viu muita coisa que nunca entendeu muito bem do país. Recebeu o apelido quando tocou pela primeira vez na Giannini Diamond do seu irmão em meio aos discursos que pediam Diretas Já na praça da Sé em 84. Ele tinha 11 anos, mas já sabia todas as canções dos Stones. Alto e magrelo, com mãos largas e algo de desafiador e sexy, Ziggy chamou a atenção da PM, um tanto frustrada de não poder controlar a multidão que protestava na praça, que viu no garoto o bode expiatório perfeito, já que ele nem fazia parte do movimento, nem era um mauricinho filho de papai.

Ziggy era da Freguesia, como a maioria dos punks paulistanos nos anos 80. Moleque que jogava bola com os mais velhos e aprendia a fumar maconha depois da escola. A polícia chegou com tudo, alguns punks interviram e salvaram Ziggy da cana, mas a pobre Giannini foi a baixa de guerra. Ficou ali estendida na rua, o corpo separado do braço, silenciosa, como uma estrela do roque morta antes da hora…

Quem o apelidou de Ziggy foi um punk das antigas, daqueles que ouviu plays do Velvet Underground no exílio no fim dos anos 60. Ele disse:

– Garoto, você tem a aura do Ziggy, do Bowie. Você devia montar uma banda…

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A banda nunca veio, nem a salvação do país. Nos anos 90, Ziggy largou um emprego careta no banco pra vender de tudo. Vivia num cafofo no Bixiga, ao lado do Madame Satã.  A trapaça estava ali. Fez muito dinheiro com sua mercadoria, mas nenhum amor. Viu muita gente ir embora.

No enterro do velho punk que o batizara, Ziggy cantou Life on Mars? com a letra toda errada, mas uma voz daquelas que só se encontra em quem já viu o que é a rua. O violão era um tonante que desafinava toda hora, mas o sentimento era verdadeiro. Ziggy nem sabia o nome do cantor, só que tinha umas fitas cassetes gravadas por vendedores da Galeria do Rock que se intrigavam com o apelido do rapaz.

Os anos 2000 vieram e o crime organizado deu uma freada nos negócios de Ziggy. Ele passou a viver de rolos de coisas antigas, da nova moda da reciclagem e de vez em quando da caridade dos velhos amigos.

Foi morar nos prédios abandonados entre as estações da Barra Funda e Júlio Prestes. Ainda conseguia de tudo, pois os contatos eram fortes, mas vender era pedir para morrer, e Ziggy queria viver.

Viver era uma trapaça, mas Ziggy não se importava.

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Um dia o noia apareceu na sua frente como um fantasma do passado, a Giannini em punho e um olhar feroz de quem precisa da vida mais do que ela mesma. Era muito fácil, Ziggy sabia. Mesmo custando todo o seu estoque de pedra do mês, valia a pena. O tesão de ter aquela guitarra mais uma vez em mãos era maior do que todo o barato que a droga poderia lhe fornecer.

Mas ele precisava de cordas. Aquelas não serviam mais. Faltava uma mizinha e a ré já estava se desfazendo. Não podia tocar naquela ferrugem toda. Ziggy saiu no sol de São Paulo inundado de toda a sua vida. Uma camisa surrada com motivos de aliens, uma calça boca de sino que ele roubara de um brechó do centro. Um tênis all-star branco e outro preto. Ziggy era vaidoso. O cabelo platinado era arrepiado meticulasomante, as pulseiras e anéis e colares devidamente vestidos todos os dias.

Ziggy subiu a Consolação naquele dia de janeiro, virou na Doutor Arnaldo até chegar na Teodoro. Já suado, pediu água num boteco. Água da torneira mesmo, só pra não desidratar. Ziggy quase não suava, era um de seus superpoderes.

Passou de loja em loja pedindo cordas. O resto de um jogo que alguém não usou. Foi conseguindo uma por uma, primeiro a ré depois a mi grave, a lá, a si, a sol e por fim a mizinha que a Giannini não tinha.

Desceu até a Rebouças e pegou um Anhagabaú lotado às seis da tarde. O piloto era seu amigo de outras datas e deixou ele entrar por trás. Desceu perto do metrô e foi andando até o teatro municipal, onde um amigo artista de rua tocava Moonage Daydream numa Fender surrada, mas com um som de veludo.

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Ziggy morreu com um tiro no peito, em frente ao Teatro Municipal ao pôr do sol de um dia de janeiro. Ele havia pedido ao amigo para usar o amplificador e plugando sua Giannini vintage, afinou as cordas novas e começou a tocar uma canção antiga das suas cassetes. Mal sabia ele que essa era a canção que lhe rendera a alcunha que carregara pela maior parte de todos os seus 43 anos de idade.

Seu nome verdadeiro não importa. O noia que lhe vendera a guitarra foi pego pela polícia e preso por tráfico. A notícia correu rápido quando o noia cantou que sem pestanejar que a droga não era sua e sim do esquisitão roqueiro que vivia nos predinhos da Júlio Prestes. O chefe do PCC local, pra manter os negócios cobrou a dívida do próprio noia que fora solto na mesma tarde. Esse pegou um 38 do cunhado que também era PM e esperou Ziggy no caminho que fazia pelo centro todos os dias. Ao menos o noia teve a decência de esperar que Ziggy tocasse a canção inteira.

Ziggy caiu como se não sentisse nada, a Giannini com o azul prata manchado de sangue no colo. Ao longe ele podia ver a TV do boteco anunciando a morte de um roqueiro inglês que ele nunca vira na vida.

A vida era trapaça, ele sabia, mas se havia trapaça melhor, Ziggy não conhecia.