Ziggy

Era trapaça, ele sabia. Ziggy sentiu os dedos latejando com os calos abrindo outra vez depois de tantos anos. As cordas meio enferrujadas com o tempo doíam ao rasgar a pele desacostumada, mas havia familiaridade no processo. Era como voltar para casa.

– Quanto você quer por ela?

Empunhou a guitarra como uma arma para seu interlocutor. Era uma Giannini dos anos 70, modelo Diamond. Ziggy segurava a abertura do f da semiacústica como se fosse um gatilho.

– Sei lá, bicho, achei essa no meio das coisas do meu irmão. Tirei de lá antes que a família descobrisse. Sabia que cê ia curtir. Paga o que cê acha que pode.

Ziggy, um metro e oitenta e dentes amarelados pela nicotina e o uso de maconha desde os anos 80 avaliou a proposta do noia a sua frente, sabendo exatamente o que ele queria. Tirou um pacotinho suspeito do bolso dos jeans surrados, certificando-se que ainda estava lá. Era tão magro que às vezes as coisas do bolso caiam ao caminhar.

– Isso aqui está bom?

Ele sabia que o rapaz aceitaria bem menos do que aquilo que tinha no pacote, mas Ziggy se sentia magnânimo naquele dia. Maior que o sol. Além do mais, a guitarra era azul quase prata, como aquela há tantos anos.

Era trapaça, ele sabia, mas Ziggy apoiou o instrumento nas costas e saiu do túnel debaixo da estação como se fosse um andarilho clássico de filme americano. O que evidentemente era, a seu modo.

Precisava de cordas.

****

Ziggy sempre tinha o que todo mundo queria. Pó, pedra ou pico. As plosivas silenciosas lhe rogavam a fama de junkie mor das redondezas. Ele mesmo não era um noia muito frequente. Sua tara era a psicodelia da guitarra. O som retirado do instrumento certo na hora certa. Era paudurescente e contraproducente ao mesmo tempo, mas era o que lhe fazia andar um outro dia.

Era a trapaça diária.

A teia de aranha que envolvia lentamente nosso herói numa tarde ensolarada era sua húbris refinada de conhecedor do negócio.

Nascido e criado nos anos 70, ele viu muita coisa que nunca entendeu muito bem do país. Recebeu o apelido quando tocou pela primeira vez na Giannini Diamond do seu irmão em meio aos discursos que pediam Diretas Já na praça da Sé em 84. Ele tinha 11 anos, mas já sabia todas as canções dos Stones. Alto e magrelo, com mãos largas e algo de desafiador e sexy, Ziggy chamou a atenção da PM, um tanto frustrada de não poder controlar a multidão que protestava na praça, que viu no garoto o bode expiatório perfeito, já que ele nem fazia parte do movimento, nem era um mauricinho filho de papai.

Ziggy era da Freguesia, como a maioria dos punks paulistanos nos anos 80. Moleque que jogava bola com os mais velhos e aprendia a fumar maconha depois da escola. A polícia chegou com tudo, alguns punks interviram e salvaram Ziggy da cana, mas a pobre Giannini foi a baixa de guerra. Ficou ali estendida na rua, o corpo separado do braço, silenciosa, como uma estrela do roque morta antes da hora…

Quem o apelidou de Ziggy foi um punk das antigas, daqueles que ouviu plays do Velvet Underground no exílio no fim dos anos 60. Ele disse:

– Garoto, você tem a aura do Ziggy, do Bowie. Você devia montar uma banda…

****

A banda nunca veio, nem a salvação do país. Nos anos 90, Ziggy largou um emprego careta no banco pra vender de tudo. Vivia num cafofo no Bixiga, ao lado do Madame Satã.  A trapaça estava ali. Fez muito dinheiro com sua mercadoria, mas nenhum amor. Viu muita gente ir embora.

No enterro do velho punk que o batizara, Ziggy cantou Life on Mars? com a letra toda errada, mas uma voz daquelas que só se encontra em quem já viu o que é a rua. O violão era um tonante que desafinava toda hora, mas o sentimento era verdadeiro. Ziggy nem sabia o nome do cantor, só que tinha umas fitas cassetes gravadas por vendedores da Galeria do Rock que se intrigavam com o apelido do rapaz.

Os anos 2000 vieram e o crime organizado deu uma freada nos negócios de Ziggy. Ele passou a viver de rolos de coisas antigas, da nova moda da reciclagem e de vez em quando da caridade dos velhos amigos.

Foi morar nos prédios abandonados entre as estações da Barra Funda e Júlio Prestes. Ainda conseguia de tudo, pois os contatos eram fortes, mas vender era pedir para morrer, e Ziggy queria viver.

Viver era uma trapaça, mas Ziggy não se importava.

****

Um dia o noia apareceu na sua frente como um fantasma do passado, a Giannini em punho e um olhar feroz de quem precisa da vida mais do que ela mesma. Era muito fácil, Ziggy sabia. Mesmo custando todo o seu estoque de pedra do mês, valia a pena. O tesão de ter aquela guitarra mais uma vez em mãos era maior do que todo o barato que a droga poderia lhe fornecer.

Mas ele precisava de cordas. Aquelas não serviam mais. Faltava uma mizinha e a ré já estava se desfazendo. Não podia tocar naquela ferrugem toda. Ziggy saiu no sol de São Paulo inundado de toda a sua vida. Uma camisa surrada com motivos de aliens, uma calça boca de sino que ele roubara de um brechó do centro. Um tênis all-star branco e outro preto. Ziggy era vaidoso. O cabelo platinado era arrepiado meticulasomante, as pulseiras e anéis e colares devidamente vestidos todos os dias.

Ziggy subiu a Consolação naquele dia de janeiro, virou na Doutor Arnaldo até chegar na Teodoro. Já suado, pediu água num boteco. Água da torneira mesmo, só pra não desidratar. Ziggy quase não suava, era um de seus superpoderes.

Passou de loja em loja pedindo cordas. O resto de um jogo que alguém não usou. Foi conseguindo uma por uma, primeiro a ré depois a mi grave, a lá, a si, a sol e por fim a mizinha que a Giannini não tinha.

Desceu até a Rebouças e pegou um Anhagabaú lotado às seis da tarde. O piloto era seu amigo de outras datas e deixou ele entrar por trás. Desceu perto do metrô e foi andando até o teatro municipal, onde um amigo artista de rua tocava Moonage Daydream numa Fender surrada, mas com um som de veludo.

****

Ziggy morreu com um tiro no peito, em frente ao Teatro Municipal ao pôr do sol de um dia de janeiro. Ele havia pedido ao amigo para usar o amplificador e plugando sua Giannini vintage, afinou as cordas novas e começou a tocar uma canção antiga das suas cassetes. Mal sabia ele que essa era a canção que lhe rendera a alcunha que carregara pela maior parte de todos os seus 43 anos de idade.

Seu nome verdadeiro não importa. O noia que lhe vendera a guitarra foi pego pela polícia e preso por tráfico. A notícia correu rápido quando o noia cantou que sem pestanejar que a droga não era sua e sim do esquisitão roqueiro que vivia nos predinhos da Júlio Prestes. O chefe do PCC local, pra manter os negócios cobrou a dívida do próprio noia que fora solto na mesma tarde. Esse pegou um 38 do cunhado que também era PM e esperou Ziggy no caminho que fazia pelo centro todos os dias. Ao menos o noia teve a decência de esperar que Ziggy tocasse a canção inteira.

Ziggy caiu como se não sentisse nada, a Giannini com o azul prata manchado de sangue no colo. Ao longe ele podia ver a TV do boteco anunciando a morte de um roqueiro inglês que ele nunca vira na vida.

A vida era trapaça, ele sabia, mas se havia trapaça melhor, Ziggy não conhecia.

Limp

You blew it hard when you knew I was
dead upon your fingers, your nails that trapped
my heart inside the coffin you designed in the shape of
your entirety denied by words I never even
uttered, murmured, thought, you
feast upon the world I helped you
create you use my words, but not my
body, that lay decaying in the no
functioning of your ever lacking use
for understanding.

Minha teoria sobre Rey em Star Wars

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[ATENÇÃO TEM SPOILER PRA CARALHO AQUI ESTÃO AVISADOS]

 

Todo mundo viu O Despertar da Força e com certeza milhões de teorias sobre essa protagonista maravilhosa apareceram. A maioria delas se perguntando sobre as origens que ainda permanecem bem escondidas dessa scavenger de Jakku. Uma delas é ela estar relacionada à família Skywalker de alguma maneira. O trailer que repete a famosa frase de Luke “The Force grows strong in my family” faz pensar que a garota seria filho de Leia e Han. Como vimos em Despertar, o descendente do casal da trilogia clássica é mesmo o sinistro Kylo ren, cavaleiro do lado negro da força obcecado em ser o avô Darth Vader. Alguns ainda insistem que mesmo assim Rey poderia ser filha de Leia ou de Han. Acho meio difícil. À vista disso, alguns dizem que Rey é filha de Luke. No entanto eu não acredito muito nessa teoria. Luke, como vemos no filme, é o Jedi por excelência e, como um Jedi solitário ele espera a força dar a resposta para seu próximo passo. Assim como Obi Wan no Episódio IV, Luke permaneceu em exílio, um ermitão sem nenhuma ligação com ninguém. Então acho um tanto forçado imaginar que ele tenha tido contato sexual com alguma pessoa desconhecida e além disso abandonado essa pessoa, grávida de uma criança sem ao menos sentir na força a existência de tal.

Então de onde vem Rey? Quem são seus pais e por quê ela é tão poderosa?

A minha teoria é que Rey é  a reencarnação de Anakin Skywalker. Ou então a reencarnação física da força na forma da representação de alguém que trará equilíbrio à força. O famoso escolhido da profecia Jedi. Lembrem-se, Anakin deveria restaurar o equilíbrio na força, porém ao ser tentado para o lado escuro essa restauração se deu de formas tortas e estranhas que culminaram no seu sacrifício no Episódio VI. Porém, se a saga houvesse terminado ali poderíamos dizer que o objetivo foi concluído. No entanto, como vemos em Episódio VII a força continua, ou tornou a estar, desequilibrada, portanto, eu penso se uma remanifestação da força num ser poderoso não seria mais uma vez uma tentativa da força viva de se reequilibrar? Lembremos que Star Wars fala de ciclos o tempo inteiro e os temas e filosofias são relembrados e renovados a cada filme e obra. Faz parte da própria essência da série. Mas eu penso em outros detalhes, e eles são:

Se pensarmos, assim como Anakin, Rey tem um controle sobre a força natural e aparente. Como Anakin, ela tem um entendimento sobre as coisas inato. Ela conserta, pilota e entende todos os seres e máquinas do mundo sem nunca ter tido qualquer tipo de educação formal. Exatamente como Anakin. Mas o que mais me convence disso é o passado obscuro de Rey. Assim como Anakin ela pode também ter sido concebida pelos midichlorians  e por que não ser a essência do próprio Anakin?

Uma última cena que me faz pensar bastante nessa teoria é a do sabre de luz. Kylo Ren quer o sabre de luz de Anakin, de Vader. Para ele é seu direito de família. Veja bem, família. Isso é importante. A família Skywalker não passa a força simplesmente pelo direito de sangue, mas sim pelo reconhecimento pela força. E veja bem, o sabre de Anakin reconheceu Rey. Eu sei, isso simplesmente pode comprovar que ela é filha de algum dos Skywalkers, mas pensem comigo: se ela for a reencarnação de Anakin, o sabre construído pelo próprio, num momento de autoconhecimento extremo como seu aprendizado como Jedi, não estaria mais propenso a voltar para seu próprio dono? Lembre que Luke construiu o próprio sabre quando perdeu o seu junto com sua mão decepada no Episódio V. Ele não manteve o sabre de luz do pai.

Enfim, apenas algumas ideias…

Ossos

A avenida gemia lá embaixo e Juliana distraia as crianças enquanto eu observava da sacada a cidade escurecida. Não chovia mais, mas o cheiro da umidade persistia como uma lembrança pegajosa. Sentei-me na cadeira de vime que ainda estava molhada e acendi um cigarro. Tive dificuldades de manter a chama e suguei mais forte o filtro, tossindo alto e despudoradamente. Quando finalmente senti a primeira tragada esquentando o pulmão senti meus ossos mais velhos que aquela avenida. Pensei: “pelo menos não tenho pele de pedra”. Um pernilongo se fazia visível a cada tragada alaranjada. As cores dos faróis eram pequenos luminares de cigarros elétricos baforando contra o escuro inevitável da cidade em silêncio. Senti as mãos finas, mas firmes de Juliana nos meus ombros apertando com força como ela sempre me fez. Ergui os ouvidos para checar o que era das crianças. Contavam piadas sob a luz das velas com cheiro da mãe. Juliana atacou um nervo na escápula direita. Soltei um gemido e ela me chamou de fracote. Lembrei-me da primeira vez que ela usou suas mãos em mim num bar entre amigos. Um aperto decidido e firme como se deixasse claro seu propósito. Sua mão esquerda desceu pelo meu pescoço até minha mão com o cigarro. Roubou o toco e se afastou de mim decidida, apoiando-se no beiral da sacada.

“Você traga muito forte, isso ainda vai te matar”.

Pensei em argumentar que quase nunca fumava, mas isso já não era verdade. Desde que meu pai falecera no ano passado passei de fumante ocasional para viciado que se recusa a enxergar a verdade. Não disse nada a Juliana e tirei outro cigarro do maço e acendi, dessa vez com mais destreza, não dando margem ao vento frio de São Paulo. Juliana esfregou sentou no alambrado como se respondesse à minha ousadia com mais ousadia. Senti vertigem só de olhar. Sempre tive vertigem, daquelas de sentir vontade de pular na linha quando o trem do metrô se aproxima. Juliana sempre riu quando eu fechava os olhos ao sentir o trem se aproximando. Eu sentia um frio na barriga e mesmo com os olhos fechados a imagem do meu corpo se jogando na linha vinha à cabeça. Era o mesmo frio na barriga quando trepava com Juliana, algo que nunca contei a ela  mesmo depois de quinze anos.

“Belo exemplo pros seus filhos” – Tentei sabendo que tinha falhado miseravelmente no nosso jogo. Juliana segurou-se, sentada no beiral, as mesmas mãos fortes que me seguravam para não pular de vertigem eram a única coisa que a prendiam contra a gravidade e a escuridão da imensidão à minha frente. Perdi o fôlego quando ela se inclinou e pude enxergar, mesmo sem ver, o infinito de tudo. Arqueou os seios pequenos e como se se espreguiçasse ergueu um dos seus pés, o esquerdo com uma tatuagem de rosa para a minha coxa até meu pau. Senti um medo terrível e comecei a chorar em silêncio. Ela gemia de preguiça e dor nas juntas já não tão jovens enquanto eu me aproveitava da escuridão para segurar o medo e o tesão.

“Sente isso aqui Pedro, vem respirar! Do que você tem medo?”

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Acordei com a energia voltando de supetão e os aparelhos bipando enlouquecidamente, os mostradores piscando verdes como substâncias radioativas em filmes B de ficção científica. Eram seis e meia e o ar frio persistia. Era aquele ar que parece que vai regelar sua alma, mas que no fundo é uma ilusão e você sente o calor do seu corpo aquecendo tudo, além de você mesmo. Havíamos dormido todos juntos na cama larga demais que Juliana insistira em comprar. Ela estava certa, jamais caberíamos numa cama menor, eu, ela, Heitor e Mafalda. Os dois haviam contado piada e pulado na cama até desmaiarem de sono na noite anterior numa espécie de ritual que eu não me lembrava de ter tido com minha família. Juliana adormeceu logo depois, muito cansada até pra sussurrar qualquer coisa. Só consegui dormir bem mais tarde depois de decorar todas as silhuetas dos objetos de nosso quarto com os olhos acostumados ao escuro. Refleti muito como eu era adaptável a tudo e tudo me engolfava como um mar parecido com a escuridão do blecaute que tomou conta da cidade na noite anterior. Tinha a boca amarga, dor nos ossos e calor.

É curioso como o tempo passa diferente para todos. Ali adormecidos num êxtase que sempre me pareceu prerrogativa das outras pessoas apenas, uma espécie de desapego do mundo que nunca consegui atingir, meus filhos e minha mulher pareciam estar numa outra dimensão, envelhecendo mais devagar, como se congelados no tempo-espaço. Eu ainda estava assustado. Na verdade, mal havia dormido. Lembrei-me de quando Juliana engravidou dos gêmeos e o medo de não conseguir ser pai. Lembrei-me de meu próprio pai me censurando por não ter tomado cuidado, que eu não tinha um emprego decente e eu ouvindo calado como sempre ouvi. O frio na barriga de ver Juliana me provocando inclinada no beiral da sacada não me abandonou nem quando cochilei por duas horas com minha família ao meu redor. Ossos velhos não descansam, ouvi uma vez. Acho que quem quer disse isso, tinha razão.

“Você tá respirando esquisito, pai!”

Heitor me olhava com o meu próprio rosto e pude enxergar o seu pequeno sorriso de criança se transformando no meu próprio esgar irônico e na careta zangada de meu pai e por fim na escuridão. Ainda não havia luz. Eu sentia meu pulmão queimar. Ou melhor, percebia agora que Heitor me interpelava. Senti vergonha e medo. Medo de mostrar a ele que eu não era muito diferente dele. Se ao menos eu pudesse fazer o movimento inverso que imaginei para a vida de meu filho e decrescer do meu esgar para o sorriso, ser amigo de um garoto de dez anos mais uma vez e brincar de qualquer coisa que envolvesse derrotar a escuridão que teimava em persistir. Prendi o fôlego e Juliana despertou.

“Mãe o pai tá respirando estranho.”

Pude sentir o corpo de Juliana se retesar como se dissesse que havia me avisado. Os cigarros. O café. A cachaça. Eu repetia a mesma receita que matara meu pai aos 59 anos de idade e ela sabia. Mais uma vez fiquei feliz da escuridão poder esconder minha vergonha de tão mediocremente repetir a mesma história já conhecida por todos.

“Ele tá só espirrando, Heitor, vai brincar, vai, vou fazer o café.”

“Deixa que eu faço” Eu disse e sem esperar resposta me levantei segurando Heitor pelas axilas fazendo o menino rir com a surpresa. Mafalda riu junto, com os olhos sonolentos. Sai do quarto a passos rápidos e falei alto da sala que ia colocar o desenho favorito das crianças no aparelho de blu-ray. Ouvi protestos e vivas um tanto forçados quando Juliana brincava que queria ver o jornal para distrair as crianças. Entrei na cozinha com a louça acumulada do dia anterior não lavada por causa da falta de energia e abri a torneira e enfiei a cabeça debaixo da água. Respirei um pouco e tomei dois copos de água para ver se a queimação no peito diminuía. Sentia o corpo todo formigar e o peito apertava me sufocando enquanto eu tentava esconder uma tosse. Não queria que ninguém me ouvisse daquele jeito. As juntas dos meus dedos já estavam brancas apertando o mármore da pia quando ouvi:

“Você não é seu pai, sabia?”

Começou no velório mesmo. Alguém trouxe uma garrafa por que era a favorita do velho. Pedro como eu. Talvez tão duro quanto eu. Cada um a seu modo, é claro. Não era um hábito. Era de vez em quando, mas eu bebia, eu fumava, eu não me importava mais. Eu nunca tive uma relação boa com meu pai. Antes de ele morrer não consegui dizer a ele tudo o que eu sempre pensei, sobre a incapacidade que ele tinha de me enxergar, sobre os anos todos em que me vi obrigado a ser aquilo que ele queria que eu fosse, inexoravelmente falhando, tentativa após tentativa. Não era um hábito. Mas quando eu bebia eu sentia meu estômago já desgastado pelo tempo e pela ansiedade. Eu sentia o peso de tudo o que vivi e o que vou viver. Era uma sensação terrível ao mesmo tempo em que era confortável. Como os sermões de Pedro.

“Você nunca foi ele, Pedro.”

Comecei a chorar. Dessa vez sem conseguir esconder as lágrimas. Juliana fez o que sempre fez. Pegou um copo d’água, me deixou sentar no chão e me deu de beber. Ainda estava escuro lá fora e o ar parecia sugar os sons e o gosto das minhas lágrimas. Juliana sentou do meu lado e me deixou chorar o tanto que eu quisesse. Era a primeira vez que eu chorava desde que ele morrera. Mesmo no velório eu não chorei. Levei o caixão. Fiz vigília. Mas não chorei. Xingava entredentes meu pai de desgraçado, mas não chorei. Nem de raiva.

“Você é o Pedro. Agora, do que você tem medo?”

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Sabe aquele silêncio entre um frame e outro num filme? Aquele momento exato em que a tela escurece e você tem a certeza que algo chegou ao fim e que pode ser o fim ou não? Quase sempre a gente sabe quando a tela preta é a derradeira e final. O momento em que a gente pode levantar para se espreguiçar e gemer das nossas próprias dores postas em pausa pelas duas horas que o filme durou? Aquele silêncio que precede o suspiro aliviado do fim daquele filme tenso e pesado ou do descanso que finalmente seus músculos da face e do estômago poderão ter depois de rir o filme todo? Um silêncio quase palpável, mais do que comum a todos? Um momento que une a todos como um sentimento universal de nada e tudo ao mesmo tempo? Esse silêncio que não existe de verdade, mas que nos acostumamos a criar pelo simples fato de sermos humanos e encontrarmos padrões e linhas temporais para tudo?

De vez em quando este silêncio entre meios, entre espaços, entre partes é ilusório. Você sente que o filme vai acabar, mas de repente uma nova sequência, alienígena, perturbadora e geralmente cheia de novas tensões aparece para lhe pegar de surpresa e dizer que o filme, assim como a vida ainda não acabou com você.

Passava o final de Magnólia na TV. Ou um dos finais deste filme que parece ter bem mais que as 3 horas de duração que diz ter.  “Ossos velhos nunca descansam” eu ouvia no fundo da minha memória, mas agora eu sabia de quem era o rosto. O meu avô repetia essa litania toda vez que me segurava no colo, eu, um garoto magrelo não muito mais novo que Heitor mesmo. Reconheci-me na voz e no gemido do meu avô e de repente o filme acabou. Virei para o lado e disse:

“Juliana…”

arte: Vincent Van Gogh – Cabeça do Esqueleto com um Cigarro.

Craft #1

My hands lack sophistication

They shamelessly touch the world as if

(searching, looking )

for a new dystopia, a new feeling

of accumulated pessimism and death…

self-explanatory death and means

to feed the hateful noises that ring on my

words

They mean nothing, you know?

They’re crude and raw and young

and old at the same time as they’re

nothing at all costs, they

(float, escaping)

from my unsophisticated, heavy

slow and inexorably fingered

hands

Why do we have digits?

if the analogue feelings would be much more

(lighter, darker)

Take for instance the typos  I made

to compose, to create, to grab

this poem o useless woes

to assemble this golem made of

my words

Like butterflies  I killed them,

crudely, with tints of innocence

to mark my place in the world

(create, destroy)

It is I who put them in order

with such fearsome skill assembled

and terribly collected them with

my hands

Chuva

Lady_Godiva_(John_Collier,_c._1897)

“We share apocalyptic views”

– Silversun Pickups, Well Thought Out Twinkles.

1.

“A cidade envelheceu”

Era irônico Júlia dizer isso estando na estação de trem mais antiga de São Paulo comendo um bolo Ana Maria em pé vestindo uma capa de chuva amarela que destoava do clima seco e quente. Parecia não se importar, no entanto. Abrigava no rosto mais anos do que os passados por aqui, mas Júlia sempre teve um ar meditativo como se tudo que fizesse fosse calculado e nada sem propósito.

“Você deve estar com fome.”

Carregava consigo uma mala de viagens pequena. Era a peça que mais destoava de sua figura, pensei, mas talvez eu já estivesse condicionada a pensar que Júlia me causaria estranhamento. Sempre fora assim, desde que nos conhecemos no colégio há quinze anos.

“Quer um pedaço de Ana Maria? Fazia tempo que eu não comia uma dessas, nossa… Cê envelheceu também Letícia, mas sei lá, ficou bem pra você…”

A mala devia ser maior para alguém que vinha de outro país não deveria?

“Hmm tá bom isso aqui. Lá fora não tem essas porcarias, sabe? Quer dizer, tem outras, mas não com o nível tóxico delicioso daqui. Vai ver é a poluição…”

Ela enfiou o resto do bolinho na boca de uma vez só como se não quisesse perder nenhum centímetro do prazer do doce que para mim era tóxico por ter açúcar demais. Me peguei saboreando Júlia saboreando um bolinho tóxico. Era confuso.

“Júlia você só trouxe essa mala? ” Mas na verdade queria dizer: “Por que eu não te encontrei num aeroporto em vez de uma estação de trem se você veio da França e, vindo de lá, de onde você morava, de onde você viveu nos últimos doze anos, por que você trouxe apenas uma mala que deve ter um nada de roupas e objetos pessoais e por que diabos você está comendo uma porra de um bolinho tóxico de tanto açúcar parada no meio de uma multidão iluminada pelas janelas velhas de um prédio mais antigo que nós dois juntas, numa cidade que já era anciã antes de você voltar e dizer que eu envelheci bem sem que eu saiba se você está caçoando de mim ou falando sério como naquele dia há tantos anos numa época mais remota que o chão que você pisa agora, indiferente.”

Por que diabos você voltou para a minha vida?

2.

Imaculada, Júlia semi dançava pelas vias tortas do parque da Luz. Ela me dissera para relaxar, que estava tudo perfeito. Tinha chegado em Guarulhos e vindo de ônibus até a República e depois pegara o metrô até a Luz. Queria andar por São Paulo de novo. Tinha saudades. O que era confuso, pois eu também tinha saudades.

“Tá tudo tão bonito e terrível ao mesmo tempo. São Paulo tá vertiginoso, Lê.”

Recebi seu telefonema há duas horas. “Oi Lelê”. Silêncio. Não queria ter reconhecido a voz. Mais silêncio. “Sou eu, a Júlia.”

Eu sei.

Ela disse que havia chegado da França, que havia voltado, talvez, para sempre. Talvez. Eu fiquei em silêncio a conversa toda. Ela me disse que cansara da Europa. Que estava velha demais para o primeiro mundo. Eu não argumentei que aqui não era mais o terceiro mundo, mesmo que fosse tão violento quanto. Ela disse que estava na Luz, perto da minha casa, que era sorte eu ainda morar no mesmo apartamento e ter o mesmo número de telefone. Também não argumentei que a vida não era a mesma, apesar de chamar do mesmo jeito.

“Cadê seus pais?”

Ela não tinha perguntado dos meus pais ao telefone. Disse ali com os olhos sinceros que seria meio indelicado como se aparecer do nada na vida da sua ex-namorada depois de doze anos fosse a delicadeza personificada de capa de chuva numa cidade seca.

“Não chove há quase dez meses aqui, cê pode tirar essa capa”

“Eu achei que você ia gostar. Tava uma puta chuva quando eu comprei ela num mercado ali na Place de Breteuil. Tinham umas azeitonas gostosas lá, do tipo que você adora. Eu tava comendo umas quando começou a cair o maior toró, cê nem sabe, daqueles que deixam o dia num breu. Daí tinha uma barraquinha com esse capote amarelo e eu lembrei de você na hora. Sei lá, cê sabe como eu sou sensitiva e o amarelo sempre me fez lembrar de você. E tinham as azeitonas também! Daí eu comprei e era como se você estivesse lá de novo. E daí eu senti vontade de voltar pra cá.”

“Pois é, mas aqui não chove mais. Terra da garoa no more. Já era. Acabou. Zé fini.”

“C’est fini!”

Júlia fez uma cara de quem ia soltar um muxoxo e pareceu tão velha quanto eu devo parecer para ela. Não consegui decidir se a idade lhe caia bem da mesma forma que nuca consegui decidir nada sobre Júlia. Quer dizer, Júlia sempre fora uma mulher bonita com seus olhos verdes e pele morena. Seu corpo debaixo da capa ainda possuía aquela assimetria perfeita da mulher baixa e paradoxalmente esguia. Nada mudara e tudo não era mais o mesmo. Havia rugas e cansaço nos olhos que brilhavam mais que tudo, mas elas apenas a deixavam mais a mesma Júlia de sempre. Senti uma vontade de despi-la para ver se conseguia decifrar o que ela significava. Se não para o mundo, para mim.

Como se adivinhasse o que eu pensava, ela disse:

“Somos duas balzacas, Letícia.”

Sorria quando usou meu nome inteiro como quando me dava broncas nua na minha cama há mais de quinze anos atrás.

3.

Quando transávamos, quando eramos jovens, eu e Júlia não fazíamos muito barulho. Os corpos eram mais ágeis e sensíveis, os movimentos mais elegantes. No meu quarto, quinze anos depois, senti a chuva no ar quando a língua de Júlia tocou o meu grelo inevitavelmente. Eu gemi mais alto e me odiei por isso.

A capa de chuva amarela que eu sim havia adorado jazia inútil no chão bagunçado do apartamento que  um dia fora dos meus pais. Eles estavam mortos sim foi o que não respondi a Júlia quando ela me perguntou. Morreram quase juntos, minha mãe de câncer de mama há dois anos e meu pai num acidente de carro seis meses depois. Ele morreu junto com ela, eu a cho. O Acidente foi apenas a oficialização de um suicídio não oficial.

Eu ainda sentia falta deles é claro, como sentia de tudo que eu havia perdido na minha vida adulta. Inclusive o corpo de Júlia que quinze anos atrás me fez ter vontade de viver nesse mesmo quarto escuro só para três anos depois me fazer querer morrer.

A semiluz do semi-dia da minha semi-vida iluminava o corpo inteiro de Júlia que me chupava. Sua bunda continuava maravilhosa arrebitada numa linha que descia até os cabelos longos e negros criando a ilusão que ela ainda era aquela garota adolescente que um dia me amou.

Contei os passos que nos levaram pra minha cama de novo, quinze anos depois.

1) A cara de muxoxo dela;

2) O decote debaixo da capa de chuva amarela;

3) O abraço que ela me dera do nada depois da cara de muxoxo;

4) Os seios dela contra a boca do meu estômago (sou 10 cm mais alta que Júlia)

5) O frio na barriga;

6) A umidade no ventre;

7) O beijo seco, raspado dos lábios rachados pelo tempo

8) A puxada de cabelo que dei nela que arrancou um suspiro de Júlia;

9) Ela dizendo pra gente ir logo para minha casa que ela estava com muito tesão.

Nove passos. Os passos de um programa para qualquer vício (e eu tinha muitos) eram no mínimo doze. Eu nunca passava do 4o. “Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos”. Mas passei pelos nove. Não eram muitos nem demorei muito a conta-los num esforço em vão de tentar segurar o choro que vinha inevitavelmente como a chuva em São Paulo.

4.

Eu não gostava mais do meu corpo. Quando jovem adorava a natureza bélica dos meus seios que ressoavam a minha altura. Eu era uma jovem bélica. Sentia a violência do mundo no ar. Naquela época ainda chovia em São Paulo.

Era natural para uma jovem lésbica que não tinha medo de dizer isso. Meus pais aceitaram como se não aceitassem. Entendiam sem entender. Me amavam, mas eu era alienígena para eles.

Por isso gostava do meu corpo grande, blasfemador. Eu ainda era dona de mim mesma.

Naquela tarde enquanto a chuva relaxava meu corpo que formigava e cheirava a Júlia eu me achava fraca demais. Sentia meu corpo relaxar da belicosidade que não resistira nem a um abraço de Júlia.

Deixei-a dormindo e fui para a sala estalando as partes do meu corpo que ainda estavam adormecidas. Sentei nua no sofá e fiquei olhando a sombra da chuva na parede. A chuva em São Paulo às vezes tinha esse efeito miraculoso de calar a cidade e o silêncio melancólico e ensimesmado me aprazia como uma segunda foda.

Eu estava velha e cansada como essa cidade e, como ela, ainda implorava por pequenas demonstrações de alívio, como a chuva, como a língua de Júlia.

“Eu vim assim que soube.”

Senti meu corpo perder as forças. Eu não queria chorar na frente dela. Não depois de doze anos de mágoa. Não agora, nua e melada de suor, com 30 anos de idade e sozinha no mundo.

“Lembra quando a gente falava que eramos as filhas do apocalipse? Uma das crianças nascidas em 1984 como se fossemos personagens de um livro de ficção científica?”

A sombra da chuva não era exatamente uma teia de aranha, mas se intrincava como se refletisse a entropia estranha que nos levara àquele dia de novembro atípico. Talvez fossem as sombras das lágrimas inevitáveis. Não eram o reflexo da silhueta perfeita de Júlia. Essa era um buraco negro, e buracos negros não deveriam refletir, deveriam?

“Eu lia Neil Gaiman e te chamava de Morte e queria ser a delírio, lembra? Pintava os cabelos de rosa, azul e amarelo. Haha. Que ridículo… A gente era jovem…”

“Por que você trouxe uma mala pequena Júlia?”

“A gente dizia que não precisava de família. Tinha algo a ver com o que a gente escolhia, com quem a gente escolhia pra ficar no fim do mundo, lembra?”

“Você não vai ficar não é?”

“Eu li numa notícia velha, cê sabe como eu odeio internet, Lê. Eu tava de bobeira num café desses que tem computadores, acho que até parecia meio antigo, mas tudo lá naquela cidade é velho. Olha só, e eu falando que São Paulo envelheceu…”

“…”

“Eu pensei em você porque tava chovendo e eu só tinha Nadja pra ler na bolsa. E Nadja me faz lembrar de você. Olha só que engraçado, dizem que dá pra achar todo mundo hoje pesquisando no google e puxa, eu te achei rapidinho. Eu só queria ver se você tava bem…”

“Me responde.”

“Quando eu fiquei sabendo dos seus pais me deu uma dor no peito. Eu me senti… eu me senti velha, Lê. Pensei em todas as vezes que a gente se escondeu aqui no seu quarto pra trepar, eles achando que a gente estudava matemática. Eu… Eu não podia deixar você sozinha aqui… Eu… Eu não sei…”

5.

Foi numa tarde assim, sem nada para fazer. Eu fui a um protesto contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo. Eu era punk e anarquista. Meu pai, velho socialista, sentia mais frustração da minha rebeldia do que se fosse um conservador de direita. Minha mãe tinha medo de eu me machucar. O que acontecia, inevitavelmente, mas nunca nada pior do que algumas borrachadas de cassetete de PM. Eu era mulher e branca e o machismo e o preconceito velado deles muitas vezes me protegia de uma forma que me deixava mais puta da vida.

Nessa tarde eu tinha cortado um lábio com meu piercing rasgado na boca e acabei me atrasando para encontrar Júlia. Ela não gostava de me ver em protestos. Dizia que sentia medo, que queria cuidar de mim, que eu me arriscava demais. Eu queria dizer que ela era alienada, mas nunca dizia. Nunca fui capaz de dizer coisas belicosas para Júlia.

Naquela tarde ela não estava mais lá assim como não estava mais no meu apartamento quando o crepúsculo caiu e já não chovia mais.

Nunca entendi o porquê de Júlia nunca ter me dito que iria para a Europa para nunca mais voltar. Fiquei sabendo que morou em vários países por lá. Fiquei sabendo de tudo e mesmo assim fiquei por aqui. Como fiquei neste apartamento todos esses anos e agora, sozinha observando a chuva acabar mais uma vez, persisto violentamente numa vida que já não está mais lá.

São Paulo, 08/10/2014.

Imagem: John Collier – Lady Godiva.

8 razões pra assistir Orphan Black.

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Tenho um amigo que diz que dramas britânicos, pra TV ou pro cinema, são sempre, no mínimo, muito bem feitos, quando não muito divertidos. A prova tá aí: Sherlock, Dr. Who, The Woman in Black, etc. Tudo bem que Orphan Black não é exatamente um drama britânico, já que é produzido no Canadá, mas sendo distribuído pela BBC nos EUA, contém uma porção de elementos que bem poderiam figurar numa série da TV da terra do nenê blasé real.

Esse é o grande trunfo da série que se vale da receita popular que tornou icônicas algumas séries de sucesso como Lost e Alias, mas ao contrário das produções do J.J. Abrams, Orphan Black se vale do elemento Cut to the Chase e não te enrola com obscurantismos desnecessários e que tornam os arcos narrativos longos demais e que apenas existem para serem fillers de temporada.

Em Orphan Black somos transportados já na primeira sequência à plataforma de trem onde Sarah Manning – uma golpista britânica que volta ao Canadá pra reatar as relações e convencer sua mãe adotiva Mrs. S. (uma irlandesa misteriosa) a ceder a guarda de sua filha Kira – se vê face a face com uma doppelgänger que pula na frente de um trem bem no momento em que Sarah vê que as duas são iguais.

Esse começo perfeito em ação e mistério mostra exatamente o que é a série: um trem em alta velocidade, no bullshit, indo direto ao espectador como um clone corre para o outro tentando provar que é apenas sua imagem no espelho. É uma ficção científica da melhor qualidade. Orphan Black não é nenhum True Detective com sua fina linha de autoindulgente metaficção criando terrenos de exploração com pás conhecidas e adoradas, mas sim a própria pá, ou seja, a forma clássica e adorada de um bom show de ação sem os longos clichés do esgotamento comercial do formato.

O simples fato de ser uma produção canadense de um formato americano de TV aberta com influências das boas séries britânicas já é um grande motivo em primeiro lugar, mas é sempre bom lembrar que isso significa palavrões permitidos (não todos, a f-word é apenas mencionada como f this, f that, mas shit tá liberado), sangue (mesmo que de cgi), um grau de informação do que é o resto do mundo (até o contexto Thatcher é citado, I’m impressed) e uma linha narrativa preocupada mais com a história do que com os espaços vazios na grade da programação da CBS.

Se não bastar essa exagerada pictoresca explicação minha, ficam aqui mais 8 razões:


1. Tatiana Maslany. (autoexplicativo)

1.1. Tatiana Maslany de policial executiva.

1.2. Tatiana Maslany com sotaque sexy alemão e ruiva.

1.3. Tatiana Maslany de Soccer Mom.

1.4. Tatiana Maslany bióloga sexysmart de dreads (e óculos!).

1.5. Tatiana Maslany de Loira psicopata do mal.

1.6. Tatiana Maslany de Evilmistress com sotaque received pronounciation

1.7. Tatiana Maslany de novo, tá pouco de Tatiana Maslany, manda mais!

2. Clones. (ou seja, Tatiana Maslany sendo uma atriz fenomenal interpretando seis personagens ao mesmo tempo.)

3. Jordan Gavaris como Felix, o irmão adotivo de Sarah, que é o sidekick mais legal que você vai ver. Além de ser um personagem gay e provocativo, Felix é um artista e o comentarista mordaz e irônico da série.

4. Sotaques, muitos sotaques! (britânico, alemão, francês, americano, irlandês, sulafricano, todos bem colocados, não tem só América no mundo pipou!).

5. Poucos episódios com muita consistência (43 minutos não precisam de 24 episódios por temporada, por favor aprendam).

6. Ação e cliffhangers  sem nem um pingo de obviedade e mesmice (uma cena de ação em que alguém tem que escolher em quem atirar pode sim terminar com todo mundo vivo e ser genial).

7. Uma trilha genial e a melhor música de abertura de um show popular desde House (Two Fingers e Trevor Yuile, guardem bem o nome).

8. A protagonista é uma mulher, que são várias e que são, cada uma a sua maneira, fortes e independentes e chutam o rabo de muito malandro e não deve nada pra nenhum dos caras, o que faz de Orphan Black uma série um tanto feminista. (O que nos faz lembrar, Tatiana Maslany…)  

 

5 canções geniais do The National que nem tanta gente conhece.

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O The National é uma banda de hits. Os músicos de Cincinatti no estado americano de Ohio já tiveram até uma de suas canções veiculada non stop numa das campanhas presidenciais de Barrack Obama e com quase 15 anos de estrada a banda já lançou seis discos de estúdio e dois EPs que contém entre eles alguns dos grandes hinos do indie rock dos anos 2000 como All the Wine, Apartment Story, Mistaken for Strangers, Blodbuzz Ohio, Conversation 16, Graceless, entre outros. Mas nos últimos tempos a maturidade tem feito que a banda, que lançou seu primeiro disco quando todos os integrantes já tinham trinta anos de idade ou mais, alçar voos mais ousados ao mesmo tempo em que cresce em popularidade.

Enquanto se estabelece como um nome clássico do rock americano, o The National provoca frisson com seu status de art rock levado ao limite, como na exposição do artista islandês Ragnar Kjartansson, A Lot of Sorrow, que buscou inspiração na canção do aclamado disco High Violet de 2010 e mostrava uma instalação no museu de arte moderna novaiorquino MoMA onde a banda tocou Sorrow durante seis horas seguidas.

Eles transitam entre o sucesso comercial e crítico justamente por que são uma banda que encorporam todos os elementos que as duas vertentes buscam. Assim como nas letras dos Smiths (eu tenho a teoria de que o National é um Smiths hétero) as do National se apoiam numa superexposição com efeitos catárticos em quem ouve, suportada por batidas desajeitadas e eletrizantes, e rodeadas por arranjos obscuros e contagiantes dos vários instrumentos que a banda experimenta em sua música. A voz de barítono de Matt Berninger, assim como a de seu ídolo Morrissey, vem abrilhantar com um melodrama certeiro as agruras e o tédio de uma classe média educada demais, politizada demais e autoconsciente demais.

Essa combinação de elementos empolga ao ponto de atingirem o coração de uma maioria ao mesmo tempo em que escondem pérolas excêntricas, mas não menos geniais, em sua discografia. Selecionei cinco dessas pérolas para discutir aqui, algumas até um tanto conhecidas, figurando em muitos shows da banda, e outras nem tanto, todas de discos de estúdio e nenhuma de b-side obscuro, apenas canções que você pode não ter percebido muito bem:


1) Humiliation. A décima primeira canção do disco mais longo da banda (Trouble Will Find Me, de 2013) é uma pérola escondida entre canções que empolgam mais de cara como I Need My Girl, Don’t Swallow the Cap Graceless, mas até que tem figurado nos últimos shows da banda. Pontuada por uma batida quase matemática, a canção vai recebendo os elementos que a compõe aos poucos, primeiro com os acordes em pedal dos efeitos de teclado, depois com o baixo que lhe concede mais peso e as “raspadinhas” em palm mute da guitarra que também desfere alguns licks johnnymarrianos abrindo terreno para o hammond tomar conta da sonoridade ao final, enquanto a melodia cantada vai perdendo sua característica redundante pra dar lugar ao coro da letra que define a perfeita dialética de forma e conteúdo do tema da canção. 

Under the whithering white skies of humiliation é a letra que fecha o refrão da canção como um estatuto de uma tese. O desconforto de quem sobrevive a jantares (“I survived the dinner”, verso que abre a canção) e que se morresse nesse instante provavelmente só figuraria uma lista (“If I die this instant / Taken from a distance / They would probably list it down / Among other things ’round town”) é a catarse da ameaça branca (the white menace, mais conhecido como tédio), bem representada no coro com a letra “She wore blue velvet / Said she can’t help it.

2) Lemonworld. É difícil encontrar uma música não tão conhecida no High Violet. O disco arrebatou a banda para outras paradas de sucesso, mas talvez sua sétima canção seja aquela daquele disco famoso que você ouve sempre, mas nunca lembra o nome. Para mim, é uma das favoritas do disco com sua introdução de levada de violão com harmônicos de guitarra dando a entender um hit pop, mas cuja melodia cantada apenas reproduz o tédio da vida comum (assim como em humiliation acima).

“Losing my breath, dododododo” é refrão da canção que encena uma autoanálise sobre os sentimentos de alguém que está cansado ou entediado demais prum encontro de família (“you and your sister live in a lemonworld / I wanna sit here and die”). O tema é corriqueiro e banal, mas a catarse do dododododo é carregada de ironia e efetividade.

3) Thirsty. É talvez uma das canções mais bonitas e clássicas do The National. Possivelmente muito executada nos primórdios da banda, já que faz parte de seu segundo disco (Sad Songs for Dirty Lovers de 2003), é uma canção country que ainda tem muito do formato canção que a banda se valeu muito no primeiro disco e que foi abandonando pelos discos, apostando nas músicas que terminam abruptamente geniais como um episódio de Sopranos. Thirsty tem uma melodia acompanhada por um clássico dedilhado de guitarra apoiado por uma batida sincopada de bumbo e vassourinha na caixa. Culmina na repetição até o fim do verso mais importante da canção.

I don’t have a hawk in my heart, no dumbass dove in my dumbass brain. Não possuo um falcão em meu coração nem um pombo estúpido no meu cérebro estúpido. A letra não importa tanto, já que nem é tão longa assim (talvez quem sabe os versos em que Matt diz ter percebido que não é uma princesa?), mas a repetição desse verso enfatiza a vontade não atendida de alguém que está “sedento” nem que seja por um refrão que se repita ad nauseam. A náusea aqui reproduz o moto perpetuo das canções tristes para amantes sujos que o disco sugere. A imperfeição, a sede, a vontade de tudo.

4) City Middle. Para mim essa é a canção mais representativa do tema muito abordado no disco Alligator  de 2005. É uma balada no melhor estilo The National, pequenas progressões dedilhadas de guitarra e uma melodia circular de canção popular culminando num coro sem letra, tudo cantado numa oitava mais baixa, causando a estranheza e, no caso, enfatizando a ansiedade do narrador.

I think I’m like Tennessee Williams, I wait for the click, I wait, but it doesn’t kick in. O que eu acho curioso nessa letra é como a ansiedade é transfigurada na repetição dos versos que citam cidades e carros e urbanidade. No verso apontado, Matt cita o dramaturgo americano Tennesee Williams conhecido pela peça de 47 A Streetcar Named Desire (Um Bonde Chamado Desejo) que foi adaptada para o cinema em 51 pelo excelente diretor Elia Kazan, com Marilyn Monroe e Marlon Brando, e cuja temática é justamente o desconforto suburbano das relações sociais. Na verdade, a citação lembra outra peça de Williams, a Cat on a Hot Tin Roof (Gata em Teto de Zinco Quente) que também virou filme, onde um personagem sempre espera pelo “click”. A ansiedade do narrador parece ser aplacada em lugares onde tudo é “common versus common” como nas lembraças esquisitas que tem da Karen, sua interlocutora, onde ela parece mijar numa pia. O prosaico sugerido na ansiedade disso tudo é o que torna a melodia genial dessa canção.

5) Guest Room. Essa canção do quarto disco da banda (Boxer, de 2007) repete alguns versos do disco, técnica que parece pontuar a obra prima da banda e caracterizar a intertextualidade entre suas canções. A canção é, como grande parte do disco, bem melodiosa e fácil de cantar e, mais uma vez, Matt usa de sua voz de barítono pra ironizar com melodrama a futilidade do desconforto do conforto, dessa vez problematizado pela temática de Boxer que é a passagem do tempo e a depressão causada pela frustração mais do que premeditada da luta contra ele.

We miss being ruffians / going wild and bright In the corners of front yards / getting in and out of cars / We miss being deviants.” o termo rufiões, que será utilizado em Racing Like a Pro mais tarde no disco é o que Matt escolheu pra definir com ironia aquilo que define uma massa de pessoas encalacradas no próprio conforto de um status bem sucedido e entediado da vida. Da perspectiva de um homem branco de classe média, all buttoned up como o próprio Matt define, o movimento de ironizar a futilidade dessa vida (pós) moderna é um mea culpa cínico e desesperado. Nesse ponto, as letras do National são extremamente Baudelairianas. O frugal da vida (pós) moderna em situações ridículas super expostas como o próprio Matt diz no verso desta canção: “They’ll find us here / here in the guest room / where we’ll throw money at each other and cry, oh my” são de fato o Guest Room para essa catarse estranhamente deliciosa.