Ossos

A avenida gemia lá embaixo e Juliana distraia as crianças enquanto eu observava da sacada a cidade escurecida. Não chovia mais, mas o cheiro da umidade persistia como uma lembrança pegajosa. Sentei-me na cadeira de vime que ainda estava molhada e acendi um cigarro. Tive dificuldades de manter a chama e suguei mais forte o filtro, tossindo alto e despudoradamente. Quando finalmente senti a primeira tragada esquentando o pulmão senti meus ossos mais velhos que aquela avenida. Pensei: “pelo menos não tenho pele de pedra”. Um pernilongo se fazia visível a cada tragada alaranjada. As cores dos faróis eram pequenos luminares de cigarros elétricos baforando contra o escuro inevitável da cidade em silêncio. Senti as mãos finas, mas firmes de Juliana nos meus ombros apertando com força como ela sempre me fez. Ergui os ouvidos para checar o que era das crianças. Contavam piadas sob a luz das velas com cheiro da mãe. Juliana atacou um nervo na escápula direita. Soltei um gemido e ela me chamou de fracote. Lembrei-me da primeira vez que ela usou suas mãos em mim num bar entre amigos. Um aperto decidido e firme como se deixasse claro seu propósito. Sua mão esquerda desceu pelo meu pescoço até minha mão com o cigarro. Roubou o toco e se afastou de mim decidida, apoiando-se no beiral da sacada.

“Você traga muito forte, isso ainda vai te matar”.

Pensei em argumentar que quase nunca fumava, mas isso já não era verdade. Desde que meu pai falecera no ano passado passei de fumante ocasional para viciado que se recusa a enxergar a verdade. Não disse nada a Juliana e tirei outro cigarro do maço e acendi, dessa vez com mais destreza, não dando margem ao vento frio de São Paulo. Juliana esfregou sentou no alambrado como se respondesse à minha ousadia com mais ousadia. Senti vertigem só de olhar. Sempre tive vertigem, daquelas de sentir vontade de pular na linha quando o trem do metrô se aproxima. Juliana sempre riu quando eu fechava os olhos ao sentir o trem se aproximando. Eu sentia um frio na barriga e mesmo com os olhos fechados a imagem do meu corpo se jogando na linha vinha à cabeça. Era o mesmo frio na barriga quando trepava com Juliana, algo que nunca contei a ela  mesmo depois de quinze anos.

“Belo exemplo pros seus filhos” – Tentei sabendo que tinha falhado miseravelmente no nosso jogo. Juliana segurou-se, sentada no beiral, as mesmas mãos fortes que me seguravam para não pular de vertigem eram a única coisa que a prendiam contra a gravidade e a escuridão da imensidão à minha frente. Perdi o fôlego quando ela se inclinou e pude enxergar, mesmo sem ver, o infinito de tudo. Arqueou os seios pequenos e como se se espreguiçasse ergueu um dos seus pés, o esquerdo com uma tatuagem de rosa para a minha coxa até meu pau. Senti um medo terrível e comecei a chorar em silêncio. Ela gemia de preguiça e dor nas juntas já não tão jovens enquanto eu me aproveitava da escuridão para segurar o medo e o tesão.

“Sente isso aqui Pedro, vem respirar! Do que você tem medo?”

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Acordei com a energia voltando de supetão e os aparelhos bipando enlouquecidamente, os mostradores piscando verdes como substâncias radioativas em filmes B de ficção científica. Eram seis e meia e o ar frio persistia. Era aquele ar que parece que vai regelar sua alma, mas que no fundo é uma ilusão e você sente o calor do seu corpo aquecendo tudo, além de você mesmo. Havíamos dormido todos juntos na cama larga demais que Juliana insistira em comprar. Ela estava certa, jamais caberíamos numa cama menor, eu, ela, Heitor e Mafalda. Os dois haviam contado piada e pulado na cama até desmaiarem de sono na noite anterior numa espécie de ritual que eu não me lembrava de ter tido com minha família. Juliana adormeceu logo depois, muito cansada até pra sussurrar qualquer coisa. Só consegui dormir bem mais tarde depois de decorar todas as silhuetas dos objetos de nosso quarto com os olhos acostumados ao escuro. Refleti muito como eu era adaptável a tudo e tudo me engolfava como um mar parecido com a escuridão do blecaute que tomou conta da cidade na noite anterior. Tinha a boca amarga, dor nos ossos e calor.

É curioso como o tempo passa diferente para todos. Ali adormecidos num êxtase que sempre me pareceu prerrogativa das outras pessoas apenas, uma espécie de desapego do mundo que nunca consegui atingir, meus filhos e minha mulher pareciam estar numa outra dimensão, envelhecendo mais devagar, como se congelados no tempo-espaço. Eu ainda estava assustado. Na verdade, mal havia dormido. Lembrei-me de quando Juliana engravidou dos gêmeos e o medo de não conseguir ser pai. Lembrei-me de meu próprio pai me censurando por não ter tomado cuidado, que eu não tinha um emprego decente e eu ouvindo calado como sempre ouvi. O frio na barriga de ver Juliana me provocando inclinada no beiral da sacada não me abandonou nem quando cochilei por duas horas com minha família ao meu redor. Ossos velhos não descansam, ouvi uma vez. Acho que quem quer disse isso, tinha razão.

“Você tá respirando esquisito, pai!”

Heitor me olhava com o meu próprio rosto e pude enxergar o seu pequeno sorriso de criança se transformando no meu próprio esgar irônico e na careta zangada de meu pai e por fim na escuridão. Ainda não havia luz. Eu sentia meu pulmão queimar. Ou melhor, percebia agora que Heitor me interpelava. Senti vergonha e medo. Medo de mostrar a ele que eu não era muito diferente dele. Se ao menos eu pudesse fazer o movimento inverso que imaginei para a vida de meu filho e decrescer do meu esgar para o sorriso, ser amigo de um garoto de dez anos mais uma vez e brincar de qualquer coisa que envolvesse derrotar a escuridão que teimava em persistir. Prendi o fôlego e Juliana despertou.

“Mãe o pai tá respirando estranho.”

Pude sentir o corpo de Juliana se retesar como se dissesse que havia me avisado. Os cigarros. O café. A cachaça. Eu repetia a mesma receita que matara meu pai aos 59 anos de idade e ela sabia. Mais uma vez fiquei feliz da escuridão poder esconder minha vergonha de tão mediocremente repetir a mesma história já conhecida por todos.

“Ele tá só espirrando, Heitor, vai brincar, vai, vou fazer o café.”

“Deixa que eu faço” Eu disse e sem esperar resposta me levantei segurando Heitor pelas axilas fazendo o menino rir com a surpresa. Mafalda riu junto, com os olhos sonolentos. Sai do quarto a passos rápidos e falei alto da sala que ia colocar o desenho favorito das crianças no aparelho de blu-ray. Ouvi protestos e vivas um tanto forçados quando Juliana brincava que queria ver o jornal para distrair as crianças. Entrei na cozinha com a louça acumulada do dia anterior não lavada por causa da falta de energia e abri a torneira e enfiei a cabeça debaixo da água. Respirei um pouco e tomei dois copos de água para ver se a queimação no peito diminuía. Sentia o corpo todo formigar e o peito apertava me sufocando enquanto eu tentava esconder uma tosse. Não queria que ninguém me ouvisse daquele jeito. As juntas dos meus dedos já estavam brancas apertando o mármore da pia quando ouvi:

“Você não é seu pai, sabia?”

Começou no velório mesmo. Alguém trouxe uma garrafa por que era a favorita do velho. Pedro como eu. Talvez tão duro quanto eu. Cada um a seu modo, é claro. Não era um hábito. Era de vez em quando, mas eu bebia, eu fumava, eu não me importava mais. Eu nunca tive uma relação boa com meu pai. Antes de ele morrer não consegui dizer a ele tudo o que eu sempre pensei, sobre a incapacidade que ele tinha de me enxergar, sobre os anos todos em que me vi obrigado a ser aquilo que ele queria que eu fosse, inexoravelmente falhando, tentativa após tentativa. Não era um hábito. Mas quando eu bebia eu sentia meu estômago já desgastado pelo tempo e pela ansiedade. Eu sentia o peso de tudo o que vivi e o que vou viver. Era uma sensação terrível ao mesmo tempo em que era confortável. Como os sermões de Pedro.

“Você nunca foi ele, Pedro.”

Comecei a chorar. Dessa vez sem conseguir esconder as lágrimas. Juliana fez o que sempre fez. Pegou um copo d’água, me deixou sentar no chão e me deu de beber. Ainda estava escuro lá fora e o ar parecia sugar os sons e o gosto das minhas lágrimas. Juliana sentou do meu lado e me deixou chorar o tanto que eu quisesse. Era a primeira vez que eu chorava desde que ele morrera. Mesmo no velório eu não chorei. Levei o caixão. Fiz vigília. Mas não chorei. Xingava entredentes meu pai de desgraçado, mas não chorei. Nem de raiva.

“Você é o Pedro. Agora, do que você tem medo?”

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Sabe aquele silêncio entre um frame e outro num filme? Aquele momento exato em que a tela escurece e você tem a certeza que algo chegou ao fim e que pode ser o fim ou não? Quase sempre a gente sabe quando a tela preta é a derradeira e final. O momento em que a gente pode levantar para se espreguiçar e gemer das nossas próprias dores postas em pausa pelas duas horas que o filme durou? Aquele silêncio que precede o suspiro aliviado do fim daquele filme tenso e pesado ou do descanso que finalmente seus músculos da face e do estômago poderão ter depois de rir o filme todo? Um silêncio quase palpável, mais do que comum a todos? Um momento que une a todos como um sentimento universal de nada e tudo ao mesmo tempo? Esse silêncio que não existe de verdade, mas que nos acostumamos a criar pelo simples fato de sermos humanos e encontrarmos padrões e linhas temporais para tudo?

De vez em quando este silêncio entre meios, entre espaços, entre partes é ilusório. Você sente que o filme vai acabar, mas de repente uma nova sequência, alienígena, perturbadora e geralmente cheia de novas tensões aparece para lhe pegar de surpresa e dizer que o filme, assim como a vida ainda não acabou com você.

Passava o final de Magnólia na TV. Ou um dos finais deste filme que parece ter bem mais que as 3 horas de duração que diz ter.  “Ossos velhos nunca descansam” eu ouvia no fundo da minha memória, mas agora eu sabia de quem era o rosto. O meu avô repetia essa litania toda vez que me segurava no colo, eu, um garoto magrelo não muito mais novo que Heitor mesmo. Reconheci-me na voz e no gemido do meu avô e de repente o filme acabou. Virei para o lado e disse:

“Juliana…”

arte: Vincent Van Gogh – Cabeça do Esqueleto com um Cigarro.

Craft #1

My hands lack sophistication

They shamelessly touch the world as if

(searching, looking )

for a new dystopia, a new feeling

of accumulated pessimism and death…

self-explanatory death and means

to feed the hateful noises that ring on my

words

They mean nothing, you know?

They’re crude and raw and young

and old at the same time as they’re

nothing at all costs, they

(float, escaping)

from my unsophisticated, heavy

slow and inexorably fingered

hands

Why do we have digits?

if the analogue feelings would be much more

(lighter, darker)

Take for instance the typos  I made

to compose, to create, to grab

this poem o useless woes

to assemble this golem made of

my words

Like butterflies  I killed them,

crudely, with tints of innocence

to mark my place in the world

(create, destroy)

It is I who put them in order

with such fearsome skill assembled

and terribly collected them with

my hands